Dr. Newton Miguel Moraes Richa é Médico do Trabalho, Professor dos cursos de Pós-Graduação em Engenharia de Segurança do Trabalho e em Engenharia de Manutenção da UFRJ, representante da UFRJ na Comissão Nacional de Segurança Química – CONASQ – vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e Diretor Executivo da Quantum SMS Auditoria, Consultoria e Treinamento.
Em artigo anterior abordamos o conceito de “Alfabetização Ecológica”, proposto pelo físico Fritjof Capra em seu livro “A Teia da Vida”, por sua importância na construção e educação de comunidades sustentáveis, com base nas lições extraídas do estudo dos ecossistemas.
A seguir, focalizamos o conceito de “Alfabetização em Saúde”, inserido na Política de Saúde implantada pela União Europeia no período 2008/2013 e definido como o desenvolvimento de habilidades para compreender adequadamente as informações sobre saúde e tornar-se apto(a) a fazer julgamentos fundamentados ao longo da vida.
Dedicamos um terceiro artigo ao tema “Alfabetização em Química”, em função da crescente presença dos produtos químicos em praticamente todas as atividades humanas, acarretando riscos às pessoas, instalações e ao ambiente, a curto, médio e longo prazos, e pelo fato do Brasil ser hoje o quinto maior produtor químico mundial.
Parte considerável das lesões e doenças que hoje afligem a humanidade decorre de exposições de natureza variada a substâncias tóxicas, por meio da inalação de poluentes dispersos no ar, da ingestão de água e alimentos veiculadores de resíduos químicos ou mesmo da sua absorção através da pele e mucosas externas. Tais exposições podem ocorrer nos diversos ambientes – lar, trabalho, lazer e transporte – em que vive o homem.
A consulta aos tratados de Toxicologia e a análise da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho do Ministério da Saúde, aprovada pela Portaria n.º 1.339/GM, de 18 de novembro de 1999, nos permitem afirmar que os produtos químicos podem produzir praticamente todos os tipos de lesão celular, desde uma simples inflamação até os diversos tipos de câncer.
Nesse contexto, ganha crescente importância a Segurança Química, um conceito global referente à proteção das pessoas e do ambiente, em todo o ciclo de vida dos produtos químicos: produção, transporte, armazenamento, utilização e descarte de resíduos. Assim, na perspectiva do desenvolvimento e consolidação de uma cultura de Segurança Química no país, estamos tratando agora da “Alfabetização em Toxicologia”, que significa dotar os cidadãos de uma compreensão clara dos seus conceitos básicos, dos diversos fatores que influenciam a exposição aos produtos químicos, das medidas de prevenção das intoxicações e dos procedimentos indicados nas situações de emergência.
A Toxicologia estuda os efeitos nocivos das substâncias nos seres vivos e, atualmente, abrange as seguintes áreas: Alimentar, Pesticidas, Medicamentos, Álcool e Drogas Ilegais, Forense, Guerra Química, Ocupacional e Ambiental. Mais recentemente surgiu a Ecotoxicologia, que estuda os efeitos nocivos dos poluentes químicos nos organismos vivos dos ecossistemas, abrangendo o homem, os animais e os vegetais, inclusive os microrganismos.
A exposição a produtos químicos está relacionada com as características anatômicas e fisiológicas humanas. A área alveolar total de cerca de 140 m2 facilita a absorção pulmonar de materiais dispersos no ar. A área da mucosa digestiva estimada em 250 m2, associada a um contato prolongado com alimentos e líquidos ingeridos, favorece a absorção digestiva. A pele, embora muito espessa em relação às duas outras membranas, tem uma área total de cerca de 2 m2 e permite a penetração de substâncias de baixo peso molecular, solúveis em gordura e no estado líquido, em contato prolongado com a mesma. Influenciam, também, a exposição, certas características físico-químicas das substâncias como peso molecular, estrutura molecular, solubilidade, volatilidade e densidade, bem como fatores ligados ao processo de utilização, como temperatura e pressão.
A preocupação inicial dos toxicologistas centrava-se nas intoxicações agudas. Durante muito tempo as exposições prolongadas a pequenas doses de agentes químicos foram consideradas inócuas. Hoje são bem conhecidos e cada vez mais pesquisados os efeitos tóxicos crônicos, resultantes da exposição prolongada a pequenas doses. Assim, a Toxicologia evoluiu da preocupação centrada nas intoxicações agudas para valorizar as intoxicações subagudas e crônicas e, mais recentemente, voltar-se para a garantia do uso seguro dos produtos químicos, adotando uma postura essencialmente preventiva.
Toxicidade e Risco Tóxico
A Toxicidade é uma propriedade específica do átomo do elemento ou da molécula da substância, do mesmo modo que o ponto de fulgor, a densidade ou a pressão de vapor. Um combustível específico tem um ponto de fulgor definido, quer exista ou não uma fonte de ignição em contato com ele. Do mesmo modo, uma substância tem uma toxicidade definida, quer exista ou não uma situação de risco tóxico (exposição). Assim, a toxicidade do ácido cianídrico é sempre a mesma, esteja ele armazenado em um recipiente hermético ou livre no ambiente. O que varia nas duas situações é o risco tóxico. Nosso desafio em todas as situações de exposição é reduzir e, se possível, eliminar o risco tóxico.
O conceito atual de substância tóxica abrange o potencial de induzir câncer ou outros tumores; provocar alterações genéticas, isto é, modificações permanentes transmissíveis de pais para filhos; causar defeitos físicos congênitos; produzir doenças humanas e em animais expostos por via respiratória, cutânea, ocular, oral ou outras vias; causar irritação ou alergia na pele, olhos ou vias respiratórias; e diminuir o estado de alerta ou alterar o comportamento humano.
Denomina-se Toxicocinética o caminho percorrido no organismo pelos produtos químicos, constituído pelas seguintes etapas: absorção, distribuição sanguínea, armazenamento, biotransformação e eliminação. Os efeitos tóxicos podem ocorrer em todas essas etapas. As substâncias irritantes produzem dano no primeiro contato com as áreas de absorção. O monóxido de carbono bloqueia a hemoglobina ao atingir o sangue. O chumbo e o manganês provocam dano no tecido cerebral, onde se armazenam em função de afinidade química. O chumbotetraetila exerce ação neurotóxica por meio do chumbotrietila, formado após sua biotransformação no fígado. A betanaftilamina é responsável pela ocorrência de câncer de bexiga nas pessoas expostas, resultante da presença de betahidroxinaftilamina na urina.
A Toxicodinâmica consiste no estudo dos mecanismos de ação tóxica das substâncias, bem como da lesão ou doença que produzem após interação com o organismo. Os mecanismos de ação tóxica abrangem:
– Bloqueio do transporte de oxigênio: o monóxido de carbono combina-se com a hemoglobina, forma carboxi-hemoglobina e assim bloqueia o transporte de oxigênio para os tecidos do organismo.
– Interferência com sistemas enzimáticos do organismo: os inseticidas organofosforados inibem a enzima acetilcolinesterase e o gás sulfídrico (H2S) inibe a enzima citocromoxidase.
A Ação Tóxica consiste na reação química da substância tóxica com um sítio sensível a ela no organismo. O Efeito Tóxico corresponde à alteração fisiológica resultante. O quadro a seguir ilustra estes conceitos.
Tóxico | Sítio sensível | Ação Tóxica | Efeito Tóxico |
Monóxido de carbono | Hemoglobina
(Sangue) |
Reação com a hemoglobina formando a carboxi-hemoglobina | Falta de oxigenação dos tecidos |
Classificação das intoxicações quanto à intensidade dos efeitos:
– Leve: distúrbios leves que desaparecem após cessar a exposição.
– Moderada: alterações reversíveis e irreversíveis, sem causar a morte ou lesão permanente.
– Grave: lesão permanente ou morte.
Classificação das intoxicações quanto ao tempo de evolução:
– Aguda: exposição única ou múltipla em um período de no máximo 24 h, com rápido aparecimento de sintomas e sinais de intoxicação.
– Subaguda: os sintomas e sinais de intoxicação surgem em um período de dias ou semanas após exposições frequentes ou repetidas.
– Crônica: os sintomas e sinais de intoxicação surgem após exposições repetidas por meses ou anos.
Limites de Exposição
Há uma relação direta entre a intensidade da exposição às substâncias e a intensidade dos efeitos tóxicos resultantes. Como a exposição é muitas vezes inevitável, foram estabelecidos, por exemplo, os limites de exposição ocupacional baseados na concentração de substâncias no ar dos locais de trabalho. Há 3 tipos principais de limites de exposição ocupacional: Limite de Exposição – Média Ponderada pelo Tempo; Limite de Exposição – Nível de Exposição de Curto Período; e Limite de Exposição – Valor Teto. A observância dos limites de exposição permite reduzir o risco tóxico dos ambientes monitorizados a níveis aceitáveis.
Monitoração Biológica
Consiste na avaliação quantitativa de agentes químicos ou de seus produtos de biotransformação em tecidos, secreções, excreções, ar expirado ou uma combinação desses para estimar a exposição. Tem como objetivo evidenciar o nível de exposição para permitir a prevenção de efeitos nocivos agudos e crônicos. A monitoração biológica está baseada em Indicadores Biológicos de Exposição (IBEs) que correspondem a níveis inócuos das substâncias ou de seus produtos de biotransformação em material biológico e refletem as respectivas doses internas.
O Controle Médico das pessoas expostas a produtos químicos deve integrar as informações obtidas no exame clínico (entrevista e exame físico), nos exames complementares, nos exames toxicológicos de monitoração biológica e na monitoração ambiental fundamentada nos limites de exposição.