Usuário deve ser o foco
Usuário deve ser o foco – A pergunta que ronda os boards das grandes corporações é: como será o mercado após 2020, vencida a pandemia? A resposta que pode valer não um, mas dezenas de bilhões de dólares ou euros ainda não existe, naturalmente.
Algumas formulações, porém, já ganham corpo a partir das primeiras experiências em países que ultrapassaram o pior cenário de contaminação e iniciaram a retomada das atividades — ainda que com muitas e devidas precauções. Para o setor automotivo, em particular, dados relevantes começam a ser colhidos na China, maior mercado mundial e epicentro inicial da Covid-19 que está em processo de reaceleração da economia.
Pelos primeiras tendências apuradas por estudo da consultoria global PwC, as áreas de marketing das montadoras, num primeiro momento, e os responsáveis por desenvolvimentos dos produtos, mais à frente, terão trabalho extra nos próximos anos.
A PwC identificou o que passou a chamar de início da “Era Humanística” da indústria automobilística. Ou seja: o desenvolvimento de produtos e serviços terão, bem mais do que até agora, o usuário como o centro do foco. “A epidemia estimulou ainda mais a mudança histórica no conceito de vida e consumo e até reviveu um sentido mais profundo de ‘humanidade’ no terceiro espaço representado pelos automóveis”, diz o estudo.
“O racional prevalecerá sobre o emocional. O foco sairá do motorista para o passageiro, que não necessariamente será o dono do veículo, mas o usuário”, alerta Marcelo Cioffi, sócio da PwC Brasil, que, nesta entrevista, interpreta alguns dos pontos manifestados pelos consumidores chineses e enfatiza sua crença de que a pandemia acelerará as transformações pelas quais a indústria automobilística já vinha passando.
O consumo do automóvel vai mudar no pós-pandemia?
A indústria automotiva já se encaminhava para uma mudança significativa com a migração do modelo tradicional de montador e vendedor de um produto para vendedor de serviços por conta da economia compartilhada e de tecnologias como os veículos autônomos. É uma disrupção muito forte, quebrando um modelo centenário do setor. Esse movimento persistirá, e até será mais intenso, mas com aspectos que antes não eram tão claros e que se tornarão mais importantes no pós-pandemia.
Quais aspectos ganharão maior relevância?
Até hoje, sobretudo, o produto era o centro dos negócios. A tendência agora é que o ser humano seja o foco. Óbvio que as empresas já ouviam o consumidor, mas não endereçavam todas as ações para o que realmente, de fato, atenderia os anseios dele.
Mas o próprio consumidor mudará, não?
Sim, isso está sendo observado na China e será observado em qualquer país e em vários segmentos. O consumidor passará a olhar mais para ele mesmo. Buscará, cada vez mais, produtos e serviços que reduzam sua ansiedade e a insegurança gerada a partir desta crise de saúde. É uma segurança ampla, sanitária, não apenas a veicular, que é uma necessidade óbvia.
É possível exemplificar?
O consumidor vai migrar para um transporte mais individualista e não necessariamente haverá uma busca enorme pela compra de um automóvel. Pode ser um veículo compartilhado, de aplicativo. Por isso, as pessoas vão querer ter a certeza de que houve uma higienização, de que o motorista não está com febre. No estudo chinês, surgiu até a sugestão de que se adotem uma forma de verificação da saúde dos motoristas. No modelo de aluguel de veículos, ele vai querer saber se o carro que escolheu e que utilizará por duas horas ou mais, que pegou no meio da rua e abriu por meio de um aplicativo no celular, foi limpo depois da última locação, se está livre de contaminações. Se o setor está deixando de oferecer um produto apenas, para prestar um serviço de mobilidade, terá que oferecer segurança na operação e até para os materiais utilizados nos veículos. Isso tem que ser pensado.
O próprio automóvel também terá de mudar?
Sim, os consumidores exigirão mais bem-estar dentro dos veículos, pois passarão mais tempo neles. Com o crescimento do trabalho remoto, as pessoas poderão morar mais longe e se deslocarem apenas eventualmente para uma reunião presencial, que continuarão a existir. Assim, iniciarão um movimento contrário ao que se viu nas últimas décadas, quando era melhor morar mais próximo do trabalho para evitar o trânsito. Ora, se eu vou morar mais longe, quero aproveitar esse tempo de deslocamento, pegarei um veículo compartilhado que seja mais confortável, com recursos que me permitam participar de uma videoconferência, por exemplo. Até a ergonomia terá de ser revista no mais longo prazo. Por outro lado, como as pessoas tendem a ficar mais em casa, para que ter dois carros na família? As pessoas podem optar por serviços de compartilhamento ou aluguel por assinatura, quando necessitarem. E aquele eventual único carro próprio, seria melhor que fosse maior, com 7 lugares, por exemplo, para uso de toda a família nos fins de semana ou em viagens. Um outro pilar que será reforçado é a preocupação com o meio-ambiente.
Por quê?
As pessoas descobriram o impacto de um vírus, mas se defendem com uso de máscaras. Imagine se houvesse um problema mais sério, transmitido pelo ar e tivermos que usar aquelas máscaras de fumaça? A questão ecológica já era um tendência das novas gerações, mas haverá uma pressão muito maior da sociedade agora por produtos e serviços ecologicamente mais corretos. E aí os carros elétricos, veículos mais eficientes, também terão um papel fundamental nisso, a despeito da queda dos preços do petróleo, da crise econômica. A reciclagem vai ser muito mais discutida. O consumidor chinês já manifestou o anseio de que os carros tenham estojo de primeiros socorros, máscaras e até sistemas de purificação de ar. Talvez os carros os compartilhados ou de locação necessitem daquele sistema disponível nos aviões e que elimina bactérias e vírus. Afinal, o consumidor não saberá se quem utilizou o veículo antes estava doente ou não.
Será um mercado mais racional…
As montadoras têm atuação ainda muito voltada para o B2C, na venda de um produto para o consumidor final. Elas se tornarão mais B2B, e esse segundo B pode ser uma empresa delas mesmas. Aí pensarão muito mais em funcionalidade e custo de operação do veículo, porque serão vendas mais focadas na razão do que no emocional, que privilegia aspectos como o design ou a potência dos motores. Num modelo de serviço, no qual o cliente não está nem aí se o carro é amarelo ou preto, se tem um desenho moderno ou não, prevalecerão a segurança, o conforto, recursos que garantam a conectividade. Será um olhar muito mais voltado para a necessidade do indivíduo do que anteriormente.
E como as concessionárias se enquadrarão nesse novo mundo?
Também devem migrar do modelo vendedor de um produto para se tornarem pontos de manutenção, de serviços, seja de higienização dos veículos, de recarga de bateria, de apoio a veículos autônomos ou daqueles utilizados em locações por hora, por assinatura.
E no Brasil?
Tirando as limitações econômicas, acredito que, ato contínuo da abertura da economia, as pessoas também evitarão o transporte público de massa. Imagino que teremos uma procura maior por outros serviços de mobilidade, como Uber ou 99. E quem já utilizava esses serviços provavelmente optará pelo aluguel de um veículo, porque desejará uma proteção maior.
As vendas devem aumentar então…
Não necessariamente todos vão comprar um carro novo. Podem voltar a utilizar o próprio, que ficava parado, ou alugar um por longo prazo, o que deve reaquecer esse modelo de negócio novamente. Claro, é uma questão econômica de cada mercado. Nos Estados Unidos, por exemplo, historicamente, após uma crise forte, as vendas de automóveis aumentam muito, sempre. Porque existe lá uma tendência de muitas promoções, incentivos governamentais.
O perfil dos produtos vendidos aqui tende a mudar por conta disso? O consumidor pode se voltar para modelos mais baratos?
Quando se avalia a venda para o cliente final, creio que a tendência pode ser essa. Isso porque haverá a migração de quem utilizava carro compartilhado e que vai querer ter veículo próprio e de menor valor, a própria crise econômica econômica também incentivará a procura por produtos mais baratos e também pelos usados, que historicamente aumenta bastante em todas as crises. Mas o que acredito mesmo é na aceleração desses serviços de compartilhamento, de locação, e no aumento de vendas de produtos que atendam a eles.
Foto: Cleuber Dias Terrão/ Divulgação