Covid-19 começa a impor suas sequelas à indústria automotiva

Demissões, investimentos cancelados, atraso tecnológico, prorrogação de prazos para atender normas de emissões e segurança: são legados da crise

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Sequelas à indústria automotivaSequelas à indústria automotiva

A pandemia de coronavírus e seus efeitos nefastos sobre a sociedade ainda parecem longe do fim, mas a Covid-19 já começa a mostrar algumas das diversas sequelas que impõe (ou vai impor em breve) à indústria automotiva no Brasil. Demissões, adiamento ou cancelamento de investimentos, atraso tecnológico, prorrogação de prazos para atender normas de emissões e segurança já são alguns dos legados visíveis da crise sem precedentes. Pior: as ações tomadas até agora pelo governo parecem insuficientes e não indicam nenhuma direção para mitigar o enorme tombo da economia. A equipe econômica parece bem mais preocupada com o deus-mercado e inevitáveis furos no teto de gastos do que em reconstruir o País.

Um mês atrás, enquanto garantia que iria usar todos os instrumentos disponíveis para evitar qualquer demissão na empresa, Pablo Di Si, presidente da Volkswagen América Latina, resumiu o sentimento do setor em relação à falta de políticas públicas para estimular a indústria, evitar cortes e criar uma agenda de desenvolvimento para tornar o País relevante no cenário global: “O governo tem a visão de não apoiar diretamente nenhum setor industrial do País. Eu respeito isso, mas essa política terá consequências. Precisamos de uma estratégia para os próximos 10 a 20 anos. Se nada for feito, o setor não sobrevive”, alertou.

A associação dos fabricantes, a Anfavea, não se animou com os recentes crescimentos mensais das vendas em julho e julho, segue com sua projeção de retração de 40% nas vendas deste ano, algo em torno de apenas 1,6 milhão de veículos, volume muito abaixo do necessário para sustentar a indústria em seu tamanho atual, com capacidade para produzir cerca de 4,5 milhões de unidades/ano.

Para piorar, a entidade entende que, no cenário mais otimista, só em 2025 o mercado brasileiro volta ao mesmo nível de 2019, perto de 3 milhões – o que também já não era considerado suficiente.

Demissões começaram e tendem a aumentar

Sem uma visão positiva sobre o futuro, as demissões ou os preparativos para isso já começaram e tendem a aumentar. Algumas empresas sequer quiseram esperar o fim do período máximo de flexibilização de contratos, com uso de instrumentos como reduções de jornada e salários ou afastamento temporário (layoff).

Nissan e Renault já fecharam turnos e demitiram 398 e 747 pessoas, respectivamente – no segundo caso os cortes foram anulados em troca da abertura de um programa de demissão voluntária (PDV) que tem o mesmo objetivo de reduzir o quadro de funcionários.

De acordo com números divulgados pela Anfavea, a indústria desligou 1.484 empregados somente em julho e 6.148 foram demitidos nos últimos 12 meses. Quase todas as fabricantes de veículos estenderam os regimes de layoff e jornada reduzida, com reduções salariais. Outras usaram esses instrumentos e abriram PDVs.

O problema maior virá após novembro, quando chegam ao fim os prazos máximos de afastamento e, se nada mudar no horizonte, a tendência é de uma escalada nas demissões nas montadoras e, por consequência, em seus fornecedores.

Investimentos e lançamentos adiados ou cancelados

A Anfavea estima que o faturamento dos fabricantes associados, em torno de R$ 200 bilhões/ano, por força da crise econômica será reduzido em 30% a 40% este anos, equivalente a perdas de R$ 60 bilhões a R$ 80 bilhões, que só deverão ser recuperadas lentamente ao longo dos próximos anos. Desta vez, as matrizes no exterior, também afetadas pela pandemia, não poderão socorrer suas subsidiárias. Sem recursos, investimentos e lançamentos terão de ser forçosamente adiados ou até cancelados.

É verdade que mesmo após a instalação da pandemia no País a indústria continuou a fazer lançamentos importantes de novos veículos. Mas estes e os que ainda vão acontecer até o fim deste ano e no próximo já estavam programados e, no máximo, sofreram pequenos ajustes ou precisaram ser adiados em poucos meses à frente. O problema é o que vem depois disso, especialmente a partir de 2022. Sem dinheiro para investir agora, parece óbvio que muitos projetos vão ter de ser paralisados, congelados, postergados ou até cancelados.

Exemplo de como a crise já afetou planos futuros de investimento é o SUV Territory, importado da China e lançado este mês pela Ford no Brasil, conforme planos anunciados há mais de um ano. Existia a expectativa que o modelo pudesse ser produzido na Argentina, mas a Ford foi clara em dizer que o cenário atual engavetou qualquer projeto nesse sentido.

Atraso tecnológico à frente

Sob o argumento de que não há recursos em caixa para desenvolver e adaptar tecnologias de redução de emissões de poluentes exigidas para atender as próximas fases da legislação brasileira estabelecida pelo Proconve L7 (veículos leves) e P8 (pesados), que deveriam entrar em vigor a partir de 2022/23, a Anfavea admitiu que já pediu ao governo o adiamento das próximas etapas do programa em dois a três anos. A entidade calcula que seriam necessários investimentos de R$ 12 bilhões para começar a produzir veículos nacionais que atendessem às novas normas de emissões.

Também entrou na alça de mira dos fabricantes tentar adiar, por prazo ainda não revelado, a adoção de alguns sistemas de segurança ativa, como frenagem automática de emergência, alerta ou assistência de troca de faixa, e até mesmo o controle eletrônico de estabilidade (ESC) que já é obrigatório para todos os novos produtos e passaria a ser exigido por lei para todos os veículos vendidos no País a partir de 2022.

São dois tipos de atrasos tecnológicos (emissões e segurança) que afetam diretamente a saúde pública e seus custos, já que cada doença respiratória ou acidente evitados salva vidas e ajuda a economizar parte dos bilhões gastos anualmente pelo governo e rede médica privada com atendimentos de emergência, tratamentos e reabilitações.

Ainda que as sequelas dessa crise sejam inevitáveis, já passou da hora de tentar mitigar seus efeitos por meio de políticas públicas de incentivo à recuperação econômica. Ainda há tempo de reduzir as perdas para o setor automotivo, mas em breve pode ser tarde demais.