Motor Euro 6 e o biodiesel
Não são nada animadores os primeiros resultados de testes realizados com aumento da mistura de biodiesel brasileiro no diesel em motor Euro 6 – que usa tecnologia para redução de poluentes no escapamento similar à que precisa ser adotada no Brasil a partir de 2022/23, quando entra em vigor a oitava fase do programa de controle de emissões para veículos pesados, o Proconve P8. Automotive Business teve acesso a um estudo realizado pela Umicore e Petrobras com diesel B10 (10% de biodiesel) e B20 em motor Euro 6 cedido pela FPT e o ensaio comprovou que o sistema de pós-tratamento de gases envelhece mais rápido com o porcentual maior (20%) de biocombustível, o que provoca perda de eficiência e aumento de emissão de óxidos de nitrogênio (NOx).
A legislação brasileira de combustíveis estabelece o aumento gradativo da adição de biodiesel ao diesel mineral, que começou em 2% (B2) em 2008 e em março deste ano chega a 12% (B10), crescendo ao ritmo de um ponto porcentual ao ano até ao B15 em 2023, quando entra em vigor o Proconve P8. No entanto, já existem pressões por parte dos produtores para fazer essa mistura avançar mais rápido rumo ao B20 – algumas acelerações já aconteceram antes. A proposta preocupa os fabricantes de veículos e seus fornecedores, pois há fortes indícios que para atender uma regulação (o aumento do biodiesel no diesel) fique mais difícil (e bem mais caro) atender outra, a do P8.
“O problema é que o sistema Euro 6 foi calibrado e testado com os padrões da Europa, onde o diesel tem no máximo 7% de biodiesel e nós aqui estamos indo mais rápido, aumentando o índice ano a ano. Não havia nada na literatura e não se sabia o que aconteceria quando essa mistura fosse elevada acima desse porcentual. É o que estamos descobrindo agora, com resultados preocupantes”, afirma Rogério Gonçalves, diretor da Associação de Engenharia Automotiva (AEA) e especialista em desenvolvimento de combustíveis. Segundo ele, a AEA está preparando um parecer técnico sobre o assunto, para ser apresentado à ANP (agência que regula o setor de combustíveis no País) e tentar evitar problemas futuros.
Gonçalves aponta que o problema reside em alguns contaminantes do biodiesel, como cálcio, potássio, sódio, magnésio e fósforo, presentes no biocombustível independentemente do óleo vegetal usado em sua produção, seja soja ou dendê. “Esses elementos envenenam o sistema de pós-tratamento Euro 6, que envelhece muito mais rápido e perde eficiência”, explica. “Ainda não temos tecnologia desenvolvida para contornar esse problema”, acrescenta.
TESTE PREOCUPANTE PARA O P8 COM BIODIESEL
Até agora, Umicore e Petrobras fizeram ensaios de 500 horas com abastecimento de B10 e B20 em um motor diesel de 7 litros e 300 cavalos da FPT (braço fabricante de motores da CNH Industrial, ex-grupo Fiat), equipado com dois sistemas Euro 6 de pós-tratamento de gases de escape, que trabalha com três blocos de catalisadores, na seguinte ordem: Catalisador de Oxidação Diesel (DOC), Filtro Catalítico de Partículas (cDPF) e Catalisador de Redução Seletiva (SCR) com injeção de solução de ureia (Arla 32). O maior problema foi encontrado no DOC do sistema que usou maior teor de biodiesel (B20), que perdeu eficiência.
O DOC tem a função de converter hidrocarbonetos (HC) não queimados na combustão e o monóxido de carbono (CO) emitidos em gás carbônico e água. Além disso, este primeiro catalisador do sistema transforma a mistura bruta de NOx que sai do motor, formada por 90% de monóxido de nitrogênio (NO) e 10% de dióxido de nitrogênio (NO2), em algo próximo a partes iguais de NO e NO2. Ou seja, o DOC converte cerca de 40% do NO em NO2 para formar uma mistura 50/50. Isso serve para fazer os catalisadores à frente funcionarem com mais eficiência. Quanto maior o teor de NO2 no gás a ser tratado, menos emissão de NOx na atmosfera o SCR deixa passar.
Nos ensaios de 500 horas, equivalentes a 300 mil km rodados, os técnicos descobriram que com o diesel B10 a mistura que sai da passagem pelo DOC e cDPF é de 46% de NO2 no início do teste (um pouco abaixo do ideal) e ao fim de 500 horas de funcionamento do sistema o porcentual baixa para 37%, o que já demonstra certo envelhecimento precoce dos catalisadores. Com B20 o resultado é pior: a transformação de NO2 começa em 44% e desce a 31% no final.
O resultado desse desequilíbrio foi medido nas emissões finais. O motor alimentado com B10 ou B20 emitiu exatamente a mesma quantidade de NOx logo após a combustão: 7,4 gramas por quilowatt/hora (kW/h). No entanto, o resultado foi bem diferente após a passagem dos gases pelo sistema catalítico. Na ponta do escapamento, o teste com B10 gerou emissão de 0,55 grama de NOx por kW/h, enquanto no ensaio com B20 essa quantidade foi 42% maior, 0,78 grama de NOx por kW/h.
SOLUÇÃO DIFÍCIL PARA COMBUSTÍVEL MUTANTE
“Conseguimos comprovar que o aumento do porcentual de biodiesel reduz a conversão de NO em NO2 e isso prejudica o resultado final do sistema. É um sinal claro que motores Euro 6 não estão preparados para funcionar bem com a mistura elevada de biodiesel”, explica Stephan Blumrich, vice-presidente e diretor da Umicore Brasil.
“Será necessário desenvolver biodiesel sem os contaminantes que envelhecem o sistema de pós-tratamento ou catalisadores que resistam a esses elementos. Existem soluções, mas são mais caras do que a tecnologia já desenvolvida na Europa, que funciona com B7. O problema é este: os fabricantes desenvolvem tecnologias globais a partir de um critério, fica difícil adaptar motores a um combustível que muda todo ano”, afirma Stephan Blumrich. |
Em resumo, ficou difícil encontrar solução adequada para regular emissões de um motor que irá funcionar com um combustível mutante, B12 este ano que será B13 em 2021 e B15 em 2023 – isso se a legislação não for novamente alterada. Essa não é uma questão nova, anos antes da normatização do Proconve P8 técnicos já advertiam que o Euro 6 enfrentaria dificuldades no Brasil por causa das características do País – e o maior teor de biodiesel no diesel era uma delas e agora isso foi comprovado pelos testes.
“É preciso destacar que não somos contra o biodiesel, apenas estamos fazendo avaliações para levantar as possíveis dificuldades e prevenir problemas. O que sabemos até agora é que o sistema catalítico envelhece mais rápido e perde eficiência piora quando usamos mais biocombustível”, pontua Edson Paixão, gerente do Centro de Tecnologia em Emissões Veiculares da Umicore Brasil. Segundo ele, os testes continuam e espera-se que em cerca de mais três meses novas conclusões possam vir à tona.
Ainda não está comprovado, por exemplo, se o sistema volta a funcionar normalmente quando a proporção de biodiesel é reduzida ou se fica estragado para sempre. Até agora, o salto de B10 para B20 mostrou acentuada piora na curva de eficiência do controle de emissões (quanto mais horas de funcionamento, pior fica o resultado), mas ainda não se sabe se essa tendência é linear, se continua a piorar na mesma proporção com o tempo de uso. Também não foi feito ainda o exame post mortem dos catalisadores, a exumação dos corpos para saber em que estado eles se encontram após a longa exposição aos contaminantes do biodiesel.
“Achamos conveniente divulgar desde já os primeiros resultados para desde já alertar sobre os riscos de adotar um sistema que pode não funcionar. Mas claro que vamos mais a fundo”, explica Stephan Blumrich.
“Nossos testes aqui já chamaram a atenção da empresa na Alemanha, que pediram para ver os resultados, porque esse ensaio nunca foi feito antes e pode prevenir futuros problemas no desenvolvimento de novas tecnologias com o aumento do uso de biodiesel na Europa”, conta Edson Paixão.
Melhor seria o HVO
Rogério Gonçalves, da AEA, concorda que não há solução pronta para evitar os problemas que poderão ser causados pelo aumento da adição de biodiesel no diesel. Ele enxerga três cenários, todos de difícil resolução. O primeiro seria repassar ao consumidor o ônus de ter de trocar mais cedo elementos do sistema catalítico, o que eleva substancialmente o custo de operação. “Outra possível solução seria o desenvolvimento de catalisadores maiores, que são mais caros e podem inviabilizar projetos, porque ocupam muito espaço que nem todos veículos teriam”, explica.
Existe ainda o caminho de obrigar todos os produtores do País a adotar processos padronizados de descontaminação do biodiesel, “o que é economicamente inviável”, destaca Gonçalves. “Para se chegar ao nível de contaminantes exigidos para fazer funcionar bem um sistema Euro 6, seria necessário hidrogenar o biodiesel. Daí é melhor hidrogenar o óleo vegetal e produzir HVO, que não tem esses contaminantes”, pondera.
Explica-se: o biodiesel é extraído de óleos vegetais ou gordura animal pelo processo de esterificação com etanol ou metanol (este último bastante venenoso). Hidrogenar o biocombustível após esse processo de fato não faz sentido, por isso é melhor pular essa etapa e adicionar hidrogênio diretamente no óleo para produzir o HVO.
O HVO (sigla para Hydrotreated Vegetable Oil, ou óleo vegetal tratado com hidrogênio) vem sendo adotado com alguma velocidade em diversos países porque tem propriedades parecidas com as do diesel mineral – não requer modificações no motor ou no sistema de catalisadores segundo testes já realizados na Europa – e traz a mesma vantagem do biodiesel com relação à redução de emissões de CO2, que vêm sendo combatidas por contribuir para o agravamento do aquecimento global. Como tem origem vegetal, boa parte das emissões de gás de efeito estufa dos biocombustíveis são reabsorvidas pelas próprias plantas que serviram de matéria-prima para sua produção.
O problema é que o Brasil ainda não produz HVO em quantidade suficiente e seu uso sequer foi regulamentado – o que é esperado para este ano.
Ao que tudo indica, levará mais tempo do que era esperado para desatar o nó do uso de biocombustíveis por veículos pesados no País.